Uma das coisas que ouço com frequência é que uma pessoa (geralmente um filho ou filha) deve fazer quadrinhos porque “ela sabe desenhar muito bem”. Costumo responder que, até certo ponto sim, mas que o fundamental mesmo é que a pessoa saiba contar uma história; do contrário, ela poderá ser uma ótima ilustradora ou desenhista, mas dificilmente será uma “quadrinista completa” (ou seja, aquela pessoa que controla todo o processo de feitura de uma história em quadrinhos).
Além disso, é sempre bom lembrar: a expressão em língua portuguesa (seja ela brasileira, “história em quadrinhos”, ou portuguesa, “história aos quadradinhos”) é mais completa do que seus “similares” de outras línguas (comics, fumetti, bande dessinée), pois deixa clara a dupla necessidade de haver uma história que precisa ser encerrada em quadrinhos visuais.
Tudo isso nos leva à seguinte pergunta: como nasce uma história? Como fazer para desenvolvê-la? Há métodos para isso? Boa parte das respostas a essas perguntas está num livro de 1973 chamado Gramática da Fantasia, escrito pelo jornalista e escritor italiano Gianni Rodari (1920-1980). Seu subtítulo (eliminado da edição brasileira) não deixa dúvidas: “introdução à arte de inventar histórias”.
Apenas na aparência o livro de Rodari é simples. Em clima abertamente autoral e, por vezes, passional (como os italianos, em geral), e longe do academicismo contemporâneo, Rodari vai elencando em pequenos capítulos (2 a 3 páginas, em média) várias técnicas de invenção de uma história.
Evitar o academicismo, aqui, não significa pobreza de ideias. Rodari cita, aqui e ali, Freud, Propp ou Vygotsky como auxiliares de sua linha de desenvolvimento de raciocínio ao longo do livro, mas sem tornar a leitura chata ou enfadonha. E, ainda que na segunda metade da obra, o seu caráter pedagógico vá ficando mais claro e mais presente, isso não diminui o prazer da leitura; apenas muda a sua angulação. Somente ao final, no capítulo “Fichas”, é que temos uma noção melhor dos autores por ele lidos, citados ou aludidos.
Durante a leitura de Gramática da Fantasia, vamos observando certas técnicas bastante úteis, como a fusão de fábulas, o uso de prefixos que “desestabilizam” os objetos, a criação de “binômios fantásticos” ou os diferentes modos de criar um mundo fantástico a partir das letras de uma palavra. Ficará claro, para o leitor mais atento, que uma considerável gama de produtos culturais contemporâneos (entre quadrinhos, livros e filmes) parece ter algum tipo de “dívida criativa” com essa obra, ainda que possa ser também mera coincidência.
Rodari dedica algumas poucas linhas e um capítulo aos quadrinhos. Neste capítulo, sublinha as diferenças entre as formas audiovisuais (TV, cinema) e os quadrinhos: as primeiras tendem a mostrar o desenvolvimento de uma ação completa, enquanto os quadrinhos, por conta da sarjeta, são obrigados a mostrar apenas partes da ação, deixando à imaginação do leitor “completar” o restante da ação. Obviamente aqui não há nada de novo, que já não tinha sido dito por outros autores da área, mas gosto da seguinte frase do autor: “se o cinema é uma escrita, o quadrinho é uma estenografia, cujo texto precisa ser reconstruído” (p. 140).
Em suma: Gramática da Fantasia, apesar de direcionado a pedagogos e professores, é também um utilíssimo manual de como aprender a criar e desenvolver histórias. E sua leitura pode ser muito bem complementada com outro livro: Fantasia – invenção, criatividade e imaginação na comunicação visual, de Bruno Munari (edição portuguesa), que discorre sobre a fantasia no universo visual (desenhos, pinturas, tipografia etc.). Mas esse livro é assunto para uma outra postagem...
Gianni Rodari
Gramática da Fantasia
São Paulo, Summus, 1982, 188 páginas