sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

99 modos de mostrar uma história

Em 1948, o escritor francês Raymond Queneau (conhecido por seu romance Zazie no Metrô), escreveu um livro "improvável", inspirado pela audição de Arte da Fuga, de Bach. Esse livro improvável narrava a "história" de dois homens que esbarram num ônibus apertado e depois se reencontram, com um dles mandando o outro colocar um botão no sobretudo. Fim da história, com um detalhe: Queneau narra essa história de 99 modos diferentes: em forma de texto telegráfico, com várias figuras de retórica, em vários tempos verbais etc. Estamos falando do livro Exercícios de Estilo.

Em 2005, o norte-americano Matt Madden faz sua versão quadrinizada para a ideia de Queneau, e cria 99 variações diferentes para narrar uma mesma outra "história". Nesse caso, a história do homem que deixa seu notebook num escritório, desce para pegar algo na geladeira quando é interrompido por uma pergunta da esposa sobre as horas e que, após responder a ela, esquece o que ia fazer, diante da geladeira aberta. Estamos falando de 99 Ways to Tell a Story - exercises in style.

O livro de Madden equivale a um excelente curso de quadrinização. Ao longo de suas quase 200 páginas, ele dá um título (algumas vezes, paratextualmente importante para a nossa compreensão) à nova versão e mostra o resultado final quadrinizado. Para alguns, poderá ser sinal de admiração (ou de frustração) ver que ele brinca de narrar a história no estilo de Jack Kirby, Hergé, Robert Crumb, Winsor McCay ou da tapeçaria de Bayeux; ou através de outros gêneros gráfico-visuais (publicidade, mapa, gráfico, storyboard, fotonovela...). Deste último caso (os gêneros gráfico-visuais), podem surgir boas noções do que pode auxiliar não só na feitura de uma HQ mas também na produção de uma infografia.

Mas um dos melhores momentos do livro são as variações que podemos chamar de narratológicas, nas quais ele vai alternando os pontos de vista (das personagens, da geladeira) ou a temporalidade ou velocidade (com a compressão ou a dilatação do tempo através da sintetização da ação num só quadro ou do acréscimo de quadros). De modo didático, vai mostrando como podemos alterar uma história mudando não o seu enredo, mas os modos de mostrar a história.

Aliás, é por isso que o título acima fala em "mostrar uma história". De fato, o que Madden mais faz é multiplicar os modos de mostrar uma história, e não de narrá-la (ao menos, para mim, o verbo "narrar" remete em demasia ao texto verbal). Tanto que as modificações do texto verbal no conjunto dos exemplos são mínimas.

Em alguns momentos, o trabalho de Madden remete ainda aos experimentalismo do Oubapo, grupo de quadrinistas experimentais franceses que produzem os famosos "quadrinhos restritos" (com a mesma imagem ou com o mesmo texto ou com outras possibilidades que "restringem" o campo de atuação do quadrinista - vide o trabalho de François Ayroles intitulado "Feinte Trinité").

Em suma: seja você um teórico dos quadrinhos ou um quadrinista, esse livro será útil, divertido e potencializador de novas ideias. Talvez alguns reclamem que a ênfase do livro é muito mais forte no "como mostrar" (na forma) do que no "o que narrar" (no conteúdo). Sejamos francos: de nada adianta ter uma boa história se você não souber quadrinizá-la adequadamente...

P.S.: apenas depois é que percebi que os dois últimos quadros da "história" de Matt Madden fazem alusão visual às fotos do norte-americano Philip-Lorca diCorcia, "Mario", de 1978...

Matt Madden

99 Ways to Tell a Story - exercises in style

Jonathan Cape, Londres, 2006, 208 páginas

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